Cristo liberta e Maria acorrenta?
Antes de mais nada, quero dizer que há 12 anos minha vida espiritual mudou completamente. Em 24 de maio de 2003, eu fiz a Consagração Total a Jesus pelas mãos de Maria, conforme sugere São Luís Maria Grignion de Montfort, no Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem.
Sem dúvida, a verdadeira devoção à Virgem Maria é um caminho fácil, curto, perfeito e seguro para conduzir à união com Cristo, como São Luís diz no Tratado (cf. n 152-168). Mas, será que nós, consagrados, temos vivido a consagração da melhor forma? Será que nossa vivência é testemunho para despertar em outros corações o anseio por uma vida assim consagrada e de busca pela santidade?
No Tratado, quando se faz menção aos "falsos devotos e às falsas devoções", fala-se (e quero ressaltar) sobre os "devotos exteriores, que fazem consistir toda a devoção à Santíssima Virgem em práticas exteriores; que só tomam interesse pela exterioridade da devoção à Santíssima Virgem" (cf. n 96). Tudo isso justamente em contraposição à verdadeira devoção, que é interior (cf. n 106). Ao fazer referência às práticas devocionais, São Luís lista práticas interiores, tais como honrar Maria como Mãe de Deus, meditar suas virtudes, contemplar suas grandezas, fazer-lhe atos de amor, invocá-la cordialmente, oferecer-se e unir-se a ela, sempre buscar agradá-la etc. (cf. n 115). Além disso, o santo cita também as práticas exteriores: alistar-se em suas confrarias, publicar seus louvores, dar esmolas, jejuar e mortificar-se em sua honra, trazer consigo suas insígnias, como o santo rosário, escapulário ou a cadeiazinha, recitar com devoção o rosário, consagrar-se a ela de maneira especial e solene etc. (cf. n 116).
Já a respeito da Consagração, na terceira prática (cf. n 236), fala-se sobre "usar pequenas cadeias de ferro", mas o santo deixa claro que "Estas demonstrações exteriores não são, na verdade, essenciais, e uma pessoa pode bem se dispensar, embora tenha abraçado essa devoção".
Mas será que é isso que temos visto nos dias de hoje? Quisera eu olhar ao meu redor e ver fiéis devotos que, na árdua realidade cotidiana, exalassem o bom perfume de nossa Mãe Maria por meio de humildade verdadeira, de obediência a Deus (e à Igreja, seu Corpo), de ações baseadas pela escuta atenta da Palavra, de serviço fraterno, oferecido de forma gratuita e discreta. Afinal, a verdadeira devoção é interior e deve nutrir-se de práticas interiores. Aquilo que melhor podemos fazer é "Começar, continuar e acabar todas as ações por ela (Maria), nela, com ela e para ela, a fim de fazê-las por Jesus Cristo, em Jesus Cristo, com Jesus Cristo e para Jesus Cristo, nosso último fim" (cf n 115).
Hoje podemos ver um grande aumento no número de consagrados pelo método proposto no Tratado, mas, infelizmente, os reconhecemos pelo tamanho de suas correntes e cadeados, e não pela piedade de suas vidas. Em tempos de "consagrado ostentação", temo chegarmos ao "Totus tuus fashion", com o uso de cadeados coloridos e variados, e deixemos cada vez mais de lado a busca pela perfeição a partir do interior.
Em paralelo com aquilo que, a meu ver, não está em conformidade com o espírito proposto pelo Tratado, quero ainda ressaltar a questão da incoerência com o simbolismo cristão. Nossa religião tem em si muitos símbolos: vela, cruz, água... A corrente não é um símbolo cristão, pelo contrário, o que vemos é a referência cristã à corrente sempre como símbolo do pecado, da condição interior da qual Cristo veio nos libertar. A cruz era símbolo de desgraça, é verdade, mas o próprio Jesus deu a ela novo significado. Já às correntes, Jesus não conferiu novo significado à luz da fé. Será que este é de fato o melhor símbolo para significar a realidade interior da consagração à Santíssima Virgem?
Quando digo correntes, refiro-me àquelas que poderiam ser usadas para prender as bicicletas e os cadeados que fecham os portões das casas. Que tipo de mensagem estamos testemunhando quando a nossa consagração é exteriorizada dessa forma?
Por que não usar cordões e pulseiras com medalhas da Santíssima Virgem? Usar anéis/alianças que simbolizem o compromisso e propósitos assumidos?
Se a função de carregar algum símbolo da consagração consigo é lembrar-se da condição de humilde escravo de Jesus pelas mãos da Santíssima Virgem, é sério isso que tem gente que precisa de correntes e cadeados enormes para se lembrarem que já não se pertencem? Será que o exterior não está tendo que gritar por algo que é silencioso no interior?
Termino com as seguintes palavras de São Luís: "O essencial desta devoção consiste no interior que ela deve formar, e, por este motivo, não será compreendida igualmente por todo mundo. Alguns hão de deter-se no que ela tem de exterior, e não passarão avante, e estes serão o maior número; outros, em número reduzido, entrarão em seu interior, mas subirão apenas um degrau. Quem alcançará o segundo? Quem se elevará até o terceiro? Quem, finalmente, se identificará nesta devoção? Aquele somente a quem o Espírito de Jesus Cristo revelar este segredo" (cf. n 119).